Avaliação Psicológica de crianças e adolescentes obesos: Princípios
Traduzido para Português no âmbito da iniciativa PerMondo (traduções gratuitas das páginas web e documentos para associações sem fins lucrativos). Projeto dirigido por Mondo Agit. Tradutor: Célia Martins
Autora(s):
Caroline Braet | |
Caroline Braet, professora doutora no Departamento de Psicologia do Desenvolvimento, da Personalidade e Social na Universidade de Gent na Bélgica |
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Sandra Verbeken | |
Sandra Verbeken formou-se em Julho de 2006 em Psicologia Clínica na Universidade de Gent (Gent, Bélgica). |
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Introdução
A investigação demonstrou que o comportamento alimentar de indivíduos obesos consiste numa grande variedade de padrões, como a ingestão de alimentos de elevado valor calórico para compensar sentimentos negativos, vómito depois de comer em excesso, ingestão de alimentos durante a noite, alimentação seletiva, recusa de refeições (1).
Pode ser difícil compreender e tratar estes comportamentos alimentares, principalmente, quando estão relacionados com fatores psicológicos. É importante realizar uma avaliação e tratamento precoces destes problemas nas crianças, pois podem facilmente atingir níveis mais graves que necessitam de intervenções mais profundas e dispendiosas (2) e podem impedir a perda de peso.
Assim, o próximo capítulo tem como objetivo resumir os antecedentes psicológicos observados na obesidade infantil. A literatura identificou vários modelos psicológicos que podem orientar uma avaliação psicológica completa. Não há nenhuma teoria “principal”, por isso, os médicos experimentam várias hipóteses quando uma criança obesa pede ajuda. Os comportamentos de restrição, os fatores emocionais, os mecanismos de aprendizagem, a personalidade e as variáveis familiares são sempre explorados para ajudar a adaptar o tratamento às necessidades individuais da criança. Deste modo, recomenda-se a criação de um perfil psicológico para todas as crianças obesas que procuram tratamento.
Serão apresentados os modelos, os fatores psicológicos e as medidas específicas que se utilizam numa avaliação. Finalmente, serão abordados os aspetos relacionados com a análise em contexto infantil.
Modelos psicológicos
Alimentação seletiva ou controlada
As crianças obesas podem demonstrar comportamentos psicológicos como a “restrição alimentar” ou a preocupação cognitiva com o peso, forma e restrição de alimentos. Não se trata de “fazer dieta” ou de usar técnicas de controlo do peso para reduzir o consumo de calorias (3). Ambos predominam nos adultos e crianças obesas (4, 5).
Estas preocupações cognitivas são muitas vezes prejudiciais. Durante a dieta, o controlo interno da fome e saciedade é ignorado a favor do controlo cognitivo (pela criança ou pelos pais) do comportamento alimentar da criança. Contudo, o controlo cognitivo é muitas vezes demasiado rigoroso e facilmente interrompido, apresentando um forte contraste com um estilo de vida saudável.
A Teoria da Restrição Alimentar é um modelo psicológico que explica os problemas alimentares após uma dieta rigorosa. Foi demonstrado que o controlo cognitivo da alimentação falha muitas vezes quando há angústia ou cansaço, o que aumenta o risco de comer em excesso. Assim, a restrição alimentar é frequentemente alternada com a compulsão alimentar, que leva a um aumento de peso. Este padrão também prevalece nas crianças obesas (6). Além disso, as falhas na restrição alimentar podem causar angústia, o que, por sua vez, favorece uma alimentação emocional. Deste modo, visto que as anomalias no estilo alimentar podem aumentar, a dieta rígida e o comportamento dietético são considerados variáveis de risco psicológico (7, 8).
Concluindo, é importante avaliar os comportamentos de restrição alimentar difíceis para nos ajudar a compreender e definir uma terapia. Aconselhar as crianças obesas a restringir a sua alimentação, sem ter em conta todo o histórico do comportamento de restrição, pode resultar em intenções alimentares mais rigorosas que, por sua vez, podem conduzir aos efeitos secundários psicológicos demonstrados e a uma perda de controlo (9).
Alimentação emocional
As emoções negativas devido aos acontecimentos da vida ou a pequenos fatores de stress diários afetam o comportamento alimentar em algumas pessoas (10-12), tanto durante as refeições como através de petiscos. Concretamente sob stress ligeiro, observa-se um maior consumo de comida reconfortante (alimentos de alto valor energético com muito açúcar e gordura) e um padrão alimentar desequilibrado em 30-43% dos adultos e adolescentes (13).
Dado que os jovens obesos sofrem diariamente com a insatisfação corporal, problemas de peso, isolamento social e baixa auto-estima (14), o seu nível de stress é elevado (15). Além disso, as emoções negativas estão relacionadas com os resultados baixos do tratamento da obesidade em alguns (16), mas não em todos (14) os estudos.
A teoria da vinculação (AffectRegulationTheory, ART) define estas observações como alimentação emocional (17). Segundo este modelo, comer sem ter fome é considerado um esforço para regular as emoções negativas, porque a comida (a) proporciona conforto a nível psicológico, (b) reduz a estimulação a nível biológico, (c) distrai as pessoas do seu estado emocional e (d) dissimula as emoções negativas (18, 19).
Concluindo, é importante avaliar a alimentação emocional e analisar os possíveis fatores subjacentes, como o stress, a baixa auto-estima, o espírito negativo, a insatisfação corporal ou o isolamento social, para definir a terapia. Neste contexto, a qualidade de vida também deveria ser avaliada.
Estilo alimentar por recompensa
As crianças obesas também podem demostrar uma elevada recetividade relativamente à comida na ausência de comportamentos alimentares ou emoções. Para estas crianças, ver, cheirar e saborear a comida conduz a uma reação automática, pelo que ignoram a sensação de saciedade. Podem ser caracterizadas como altamente sensíveis à recompensa (rewardsensitive, RS) (20).
De acordo com a teoria de sensibilidade por reforço (ReinforcementSensitivityTheory, RST) de Gray (21), RS reflete os resultados práticos do sistema de ativação comportamental (behavioralactivationsystem, BAS). A ativação do BAS provoca a ativação comportamental e uma tendência para atingir os objetivos. A investigação através de imagiologia nos adultos mostrou uma associação positiva entre RS (22) e a ativação nas áreas de recompensa do cérebro mais elevada para comida apetitosa do que para comida menos saborosa (23). Além disso, em comparação com os jovens com peso dentro da média, os jovens obesos demonstram uma maior ativação nas áreas de recompensa do cérebro como resposta aos estímulos da comida (24) e ao consumo de comida (25), o que indica que os indivíduos obesos, face aos homólogos com peso dentro da média, consideram a comida saborosa mais recompensadora (26, 27). Assim, consideramos que a RST pode explicar um terceiro mecanismo subjacente a um distúrbio alimentar.
No entanto, os processos cognitivos também devemser tidos em conta. O modelo de processo duplo (28) pressupõe que a auto-regulação ou a decisão de optar pela recompensa imediata e comer comida saborosa ou esforçar-se pelo benefício a longo prazo de perder peso e melhorar a saúde é o resultado de um balanço entre os processos ascendentes de recompensa e um controlo inibitório descendente ativo. A investigação revela uma relação entre a obesidade e o TDAH nas crianças (29-32) e entre a obesidade e outros possíveis comportamentos aditivos, todos caracterizados por um elevado RS e reduzido controlo inibitório (33, 34).
Resumindo, as crianças obesas podem apresentar uma elevada recetividade à comida, por vezes considerada como avidez ou dependência de comer em excesso, mesmo quando não existe uma restrição alimentar ou alimentação emocional. Estes padrões alimentares por recompensa podem ser considerados como uma possível terceira via, o que contribui para um distúrbio no comportamento alimentar. Desta forma, é importante avaliar RS, visto que pode ajudar-nos a compreender melhor os distúrbios alimentares e a definir uma terapia.
Impacto de patologias familiares ou psicopatologias comórbidas
Para a maioria das crianças, o ambiente familiar é o principal contexto de socialização que influencia o risco de obesidade. Apesar de ser difícil conhecer a relação entre os pais e filhos, é necessário ter em conta três mecanismos alternativos.
Em primeiro lugar, os pais adotam vários estilos e estratégias alimentares com os seus filhos e podemos afirmar que a forma como os pais alimentam os filhos pode estar relacionada com o comportamento alimentar e o nível do peso de uma criança (35). Os pais de uma criança obesa podem ter mais dificuldades em implementar regras alimentares adequadas no dia-a-dia e, por isso, optam por estratégias alimentares menos adequadas (36). A investigação demonstra que o relato dos pais de restrições alimentares está paradoxalmente associado a um elevado IMC da criança. Contudo, com base em observações durante as refeições, revela-se uma falta de controlo por parte dos pais, e não um elevado controlo tal como afirmaram, da alimentação das crianças em famílias com excesso de peso (37). Assim, não sabemos se os pais têm consciência do seu estilo parental.
É evidente que ambos os envolvimentos positivos demasiado rigorosos dos pais podem ser considerados inadequados. Desde os anos 70, tem-se notado a falta de envolvimento dos pais no contexto alimentar nas famílias obesas (38). A presença de regras e disciplina ineficazes, o uso de comida para incentivar o comportamento de uma criança e os subtis sinais de abuso emocional podem apresentar efeitos negativos. É necessário fazer estudos com base na população para se poder generalizar estes resultados.
Em segundo lugar, foi demonstrado que as patologias psiquiátricas nas mães, mas não nos pais, estavam associadas à gravidade da obesidade nos seus filhos (39).
Em terceiro lugar, uma grande parte desta investigação sobre a influência da família é correlacional e não se pode determinar a direção dos efeitos. É provável que a relação pais-filho seja bidirecional, em que o temperamento da criança também desafia as práticas de alimentação dos pais. Por exemplo, algumas crianças possuem um temperamento mais irritável ou reativo ou apresentam sintomas de interiorização (por ex., sentimentos de ansiedade, humor depressivo, queixas psicossomáticas) ou exteriorização (por ex., comportamento impulsivo, agressividade, comportamento de oposição) (40). Isto pode ser facilmente medido com escalas de auto-resposta ou resposta dos pais, mas tem de ser interpretado cuidadosamente. Os problemas psicológicos e distúrbios mentais têm sido sempre abordados nas investigações sobre a obesidade como causas do problema.
Sugerimos o modelo diátese-stress (Diathesis-Stress Model, DSM) para compreender a interação entre as características da criança e o ambiente para explicar os problemas mentais das crianças obesas. Sercriança com excesso de peso numa sociedade que promove como imagem ideal um corpo magro pode conduzir a reações negativas e baixa auto-estima, e isso pode criar uma marca (diátese), tornando estas crianças mais vulneráveis quando são confrontadas com novos fatores de stress (43). De acordo com a nossa perspetiva sobre a psicopatologia, a “hipótese do espírito dos nossos tempos” (44) (caracterizado por um corpo magro ideal e elevadas expetativas a nível escolar e social para todas as crianças) prevê um aumento em geral dos problemas psicológicos nos indivíduos com excesso de peso.
Concluindo, na obesidade infantil é muito importante analisar os problemas familiares, mas com cuidado, pois (1) os pais não parecem ter consciência do seu estilo parental e (2) algumas crianças podem ser mais difíceis de educar. Por conseguinte, também devem ser avaliadas as características da criança com sintomas tanto de interiorização como de exteriorização.
Avaliação psicológica dos jovens com obesidade
As variáveis psicológicas identificadas podem orientar uma avaliação infantil maiscompleta. No importante artigo do ECOG “Thepsychologicalapproachoftheeatingbehaviourofchildrenwho are obese” (Abordagem psicológica do comportamento alimentar das crianças obesas) (45), é recomendado um processo de avaliação com várias fases que foi adotado aqui.
Em primeiro lugar, os vários modelos psicológicos (M) possíveis podem ser testados através de uma pequena entrevista.
M1. A criança preocupa-se com restrição de comida, comportamentos de restrição dietéticos ou demasiado com o seu peso ou forma?
M2. A criança apresenta uma alimentação emocional?
M3. A criança demonstra uma elevada sensibilidade à recompensa (em geral ou particularmente a sugestões alimentares), uma baixa capacidade inibitória ou parece ser dependente de comida?
M4. Existem problemas na família relacionados com a parentalidade da criança? Ou a criança apresenta problemas de interiorização ou exteriorização?
Se uma ou mais respostas forem positivas, consideramos que existem problemas psicológicos e sugere-se uma avaliação aprofundada. Na avaliação de psicopatologias, recomenda-se a utilização de uma estratégia com várias fases (46). Este método envolve a utilização de um teste de análise para escolher situações possíveis para uma avaliação aprofundada. Visto que a observação e a entrevista não são métodos muito fiáveis, nem eficazes (47), aconselham-se questionários para analisar os problemas mentais das crianças e adolescentes efetuados aos pais (todas as idades) ou às crianças (a partir dos 8 anos). Recomenda-se a utilização de medidas de análise adequadas à idade para verificar as respostas obtidas na entrevista. Para interpretar a pontuação num instrumento de análise e avaliar o pensamento da criança, os médicos têm de comparar a pontuação em bruto (raw score) da criança com as amostras referência utilizando percentis ou T-scores. Os pontos de corte (cut-points) também podem ser usados para identificar uma criança em risco.
Para os participantes que excedam a pontuação dos pontos de corte, efectua-se outra avaliação que consiste em realizar novamente o questionário, mas durante uma entrevista estruturada.
Em geral, recomenda-se o uso de métodos de análise fiáveis e válidos e, se possível, um teste multi-informante para avaliar tanto a criança como a perceção dos pais nos mesmos domínios. A tabela abaixo apresenta umaseleção de instrumentos considerados fiáveis, válidos e disponíveis para testar os diversos modelos. Podem ser usados vários questionários psicológicos (10 minutos cada um), tarefas (20 minutos cada uma) e entrevistas (45 minutos cada uma) (ver tabela 1). Alguns são preenchidos pela criança, outros pelos pais e outros estão disponíveis numa versão para os pais e a criança. Salienta-se que algumas destas medidas só podem ser utilizadas por psicólogos (as entrevistas), mas os questionários podem ser facilmente avaliados (digitalmente) e classificados e também podem ser realizados novamente durante o acompanhamento. Para um melhor conhecimento, existem várias opções para cada hipótese (ver tabela 1).
Tabla 1. Subescalas que testam os fatores psicológicos relevantes na avaliação da obesidade infantil
Legenda: *questionário
Processo de análise otimizado
Análise dos vários modelos psicológicos incluídos num questionário
Para manter o processo de análise eficaz e tornar os longos processos de avaliação menos aborrecidos durante uma consulta pediátrica, podem ser usados questionários curtos. Além disso, muitas vezes podem ser realizados um questionário à criança e outro aos pais para analisar os vários modelos psicológicos.Para isso, o DEBQ (versão para a criança) combinado com o CBCL (versão para os pais), por exemplo, é mais eficaz, pois permite ajudar a testar 4-5 modelos de uma só vez. A criança em risco pode ser identificada utilizando pontos de corte, com base em padrões de uma amostra não clínica. Terá de ser sempre interpretado cuidadosamente, pois os instrumentos de análise revelam falsos positivos e falsos negativos consideráveis. Assim, se houver meios, verifique novamente a perspetiva da criança através de uma entrevista ou observação.
Razões para encaminhar e a importância de uma boa comunicação
Em alguns casos pode ser importante encaminhar para um psicólogo infantil qualificado indicado para uma avaliação e tratamento mais aprofundados. Por exemplo, quando é identificado um distúrbio alimentar na primeira avaliação ou parece haver problemas no comportamento da criança ou no ambiente familiar que impedem a evolução da terapia e, ainda, quando o médico que faz a avaliação não se sente suficientemente qualificado. A primeira consulta também pode identificar casos em que os pais devem ser encaminhados para um especialista para adultos para efetuar outra avaliação e ajudá-los (por exemplo, para dar conselhos sobre a parentalidade, dependência, depressão etc.).
Como os pais nem sempre têm consciência da importância da saúde psicológica subjacente para a saúde geral dos filhos, podem ficar reticentes em responder às perguntas sobre estes aspetos. É fundamental que o médico consiga superar esta resistência inicial dirigindo-se à criança e à família de uma forma adequada e agradável para a criança e que peça autorização para abordar também estes aspetos. A sua capacidade de comunicar abertamente e com compaixão cria confiança e é importante para ter uma perceção exata da vida da criança e da sua família.É essencial promover um ambiente de apoio e compreensão para evitar a estigmatização ou discriminação da criança e da sua família.
Sinais de alarme para encaminhar
Se a primeira análise identificar problemas e que a proteção da criança possa estar em causa (abuso emocional, abuso físico, bullying), recomenda-se um encaminhamento imediato para os serviços apropriados. Do mesmo modo, se a criança ganhar ou perder peso consideravelmente num período de seis meses, deverá ser encaminhada para os serviços apropriados.
Conclusão
Algumas crianças obesas podem ser “psicologicamente saudáveis”, sem apresentar qualquer dependência ou distúrbio alimentar, e ter uma boa qualidade de vida, com preferência por uma alimentação saudável e elevada motivação intrínseca por atividades físicas. O novo paradigma da “Saúde para todos os tamanhos” (48) tem de ser analisado como opção para algumas, mas não todas as crianças.
Contudo, é preciso estar ciente que os modelos psicológicos sugerem hipóteses que podem ser relevantes ou não para cada criança. Como foi referido antes, os aspetos científicos relativos aos mecanismos subjacentes ainda não foram todos investigados e alguns modelos possuem mais provas do que outros. Nas próximas investigações, será necessário estudar se devemos separar/distinguir subtipos de comportamentos de acordo com os diversos modelos psicológicos subjacentes.
Por fim, os modelos psicológicos têm de reconhecer que vivemos num ambiente nocivo, que pode influenciar a criança a nível global, para além das influências psicológicas. Portanto, um processo de avaliação deve ter em conta o papel dos amigos, a escola, os vizinhos e a comunicação social.
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