Mutações MC4R e MC3R
Traduzido para Português pelo Grupo Nacional de Estudo e Investigação em Obesidade Pediátrica (GNEIOP). Tradutora: Helena Rios. Revisora: Lúcia Gomes.
Autora(s):
Beatrice Dubern | |
Departamento de nutrição e gastroenterologia pediátrica | Hospital Trousseau | Paris | França | |
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Introdução
A via da leptina/melanocortina desempenha um papel fundamental no controlo hipotalâmico do aporte alimentar. Esta via é ativada após a libertação sistémica da adipocina leptina (LEP) e sua subsequente interação com o recetor da leptina (LEPR), localizado na superfície dos neurónios da região do núcleo arqueado do hipotálamo (figura 1).
Figura 1: Via da leptina/melanocortina
As populações neuronais propagam o sinal de várias moléculas (leptina, insulina, grelina) de modo a controlar o apetite e a saciedade. Os neurónios POMC, situados no núcleo arqueado, são ativados pela leptina e pela insulina e produzem a hormona estimulante α-melanócito (α-MSH). Esta, por sua vez, ativa o receptor MC4R, situado no núcleo paraventricular, resultando num sinal de saciedade. O papel do SIM-1, BDNF e TKRB está ainda em investigação. Um grupo diferente de neurónios, que expressa NPY e AGRP, produz moléculas que atuam como potentes inibidores da via de sinalização MC4R. Várias mutações em genes envolvidos na via leptina/melanocortina são responsáveis por obesidade grave e precoce.
POMC: proopiomelanocortina; LepR: recetor da leptina; ISR: recetor da insulina; GHR: recetor da grelina; NPY: neuropeptídeo Y; AGRP: proteína relacionada ao agouti; SIM1: single-minded 1; BDNF: factor neurotrófico derivado do cérebro; TRKB: recetor da tirosina cinase; PC1 e 2: proconvertase 1 e 2.
Os sinais que regulam a saciedade e a homeostasia energética são então propagados pela via proopiomelanocortina (POMC), pelo transcrito relacionado com a cocaína e anfetamina (CART) e pelo sistema da melanocortina (1). Enquanto os neurónios POMC/CART sintetizam um péptido anorexigénico, a hormona estimulante do α-melanócito (α-MSH), um grupo distinto de neurónios expressam o neuropeptídeo orexigénico Y (NPY) e a proteína relacionada ao agouti (AGRP), que atuam como um potente inibidor dos recetores da melanocortina 3 (MC3R) e da melanocortina 4 (MC4R).
Foram descritos cinco recetores da melanocortina (MC1R a MC5R). Via MC2R, a adrenocorticotropina (ACTH), derivada dos neurónios POMC, é um fator chave no eixo adrenal à periferia. Na pele, via MC1R, as melanocortinas têm ação parácrina e desempenham um papel fundamental na pigmentação. Os MC3R e MC4R, expressos principalmente no hipotálamo, estão envolvidos no controlo do aporte alimentar. O MC4R, também se expressa noutros tecidos como o tecido erétil e está implicado na função erétil. Por fim, o MC5R pode ter papel na secreção de glândulas exócrinas (figura 2) (2).
Figura 2: Papel dos 5 recetores da melanocortina ativados por peptídeos derivados da clivagem da proopiomelanocortina (POMC).
A adrenocorticotropina (ACTH) atua no MC2R e desempenha um papel fundamental no eixo adrenal. A ACTH, a γ-LPH (hormona γ-lipoproteina) e α-MSH desempenham um papel na
pigmentação, via MC1R. A α-MSH e β-MSH provavelmente atuam no hipotálamo, via MC3R e MC4R.
MC1R-5R: recetores da melanocortina 1 a 5; MSH: hormona estimulante dos melanócitos; PC2: proconvertase 2; JP: Peptídeo Joint; Endo-β: β-endorfinas
Enquanto as mutações em genes humanos que codificam as proteínas envolvidas na via da leptina/melanocortina (LEP, LEPR, POMC, etc) originam obesidade grave e de início precoce, com aumento ponderal rápido e dramático logo após o nascimento, a obesidade ligada às mutações do MC3R e MC4R podem ser colocadas entre estas formas excepcionais de obesidade monogénica, com penetrância completa, e as formas poligénicas de obesidade comum (3).
Mutações MC4R
O recetor MC4R é uma proteína constituída por 332 aminoácidos, codificada por um único exão localizado no cromossoma 18q22 (4). O MC4R pertence a uma família de sete recetores transmembranares acoplados à proteína G, que transmitem o sinal por acoplamento à proteína G heterotrimérica e por activação da adenilato ciclase. O MC4R é expresso predominantemente nos núcleos hipotalâmicos envolvidos na regulação do aporte alimentar, integrando um sinal de saciedade fornecido pela α-MSH e um sinal antagonista (orexigénico) fornecido pela AGRP. A ativação do MC4R, por agonistas naturais ou farmacológicos, leva a diminuição na ingestão de alimentos. O seu papel no equilíbrio energético tem sido bem demonstrado em estudos com ratos (5). Os ratos que não possuem os dois alelos MC4R (MC4R -/-) desenvolvem obesidade grave enquanto os ratos heterozigóticos (MC4R +/-) mostram um fenótipo intermédio entre ratos MC4R -/- e ratos selvagens.
a) Prevalência das mutações MC4R
Desde 1998, a avaliação genética sistemática do gene MC4R revelou que a obesidade ligada a este gene é a causa mais prevalente de obesidade oligogénica conhecida até à data. Esta mutação representa cerca de 2 a 3% da obesidade pediátrica e do adulto, atualmente com cerca de 200 mutações diferentes descritas em várias populações (europeus, norte-americanos e asiáticos) (3,6,7). As mutações incluem alterações frameshift, deleções inframe nonsense e missense e podem estar localizadas por todo o gene MC4R. A frequência acumulada de heterozigotos para estas mutações em indivíduos (extremamente) obesos é de aproximadamente 2-5% (6). Além disso, a frequência destes heterozigotos em controlos não obesos ou na população geral é cerca de 10 vezes inferior à frequência nas coortes dos doentes obesos (7,8).
Ao contrário das raras obesidades monogénicas, uma análise clínica meticulosa não detecta obesidade resultante de mutações MC4R devido à falta de fenótipo óbvio adicional. Em famílias com obesidade ligada ao MC4R, a obesidade tende a ter um modo de transmissão autossómico dominante, mas a penetrância da doença pode ser incompleta e a expressão clínica é variável (obesidade moderada a grave) dependendo de fatores ambientais e de outros fatores genéticos potencialmente moduladores (3,9,10).
Os homozigóticos ou heterozigóticos compostos de mutações MC4R são muito raros (11-13). Como se espera de uma condição dominante, a obesidade desenvolve-se precocemente e é mais grave do que nos heterozigotos, mas não exibe nenhum fenótipo adicional relacionado. Nos heterozigóticos para mutações MC4R, o início e a gravidade da obesidade são variáveis e estão relacionados com a gravidade da alteração funcional causada pela mutação.
b) Fenótipo associado a mutações MC4R
O fenótipo dos portadores de mutações MC4R tem sido debatido. Muitos autores concordam que as mutações MC4R condicionam obesidade precoce. Os portadores destas mutações exibem aumento do crescimento linear, particularmente nos primeiros cinco anos de vida (14), mas só em casos raros os indivíduos serão mais altos na idade adulta (15,16). Esta tendência é frequentemente observada em crianças com sobrepeso e obesidade. A avaliação da composição corporal demonstrou aumento tanto da massa gorda como da massa magra (14-16). Um estudo realizado em crianças inglesas com mutações MC4R sugeriu aumento da sua densidade mineral óssea e do seu tamanho (14). Este potencial aumento da densidade óssea pode ser explicado, pelo menos em parte, por diminuição dos marcadores de reabsorção óssea no soro de pacientes homozigóticos e heterozigóticos para mutações MC4R (17,18).
As crianças obesas portadoras de mutações MC4R apresentam marcada hiperfagia que diminui com a idade, quando comparados com os seus irmãos (14). Em crianças e adultos, não foi encontrada nenhuma evidência sobre a diminuição da taxa metabólica. Também não foi confirmada (9,10,20) a associação entre a doença do comportamento alimentar binge eating e alterações da sequência do gene MC4R (19).
Os adultos portadores de mutações MC4R não têm um aumento da prevalência de diabetes ou de outras complicações da obesidade (8).
Em crianças do Reino Unido, a insulinémia em jejum mostrou ser significativamente mais elevada em portadores de mutações MC4R, particularmente antes dos 10 anos de idade, quando comparados com um grupo controlo compatível para idade, sexo e índice de massa corporal (14). Esta hiperinsulinémia não tem sido consistentemente observada em crianças (12,13) e em adultos (6,19). As mutações MC4R também foram associadas a um diminuído risco de hipertensão (21).
Por fim, em relação à função endócrina, o eixo hipotálamo-hipófise e o eixo reprodutivo (9,10,14) bem como a função tiroideia são normais em portadores de mutações MC4R.
c) Consequências funcionais in vitro de mutações MC4R
O papel das mutações MC4R nos casos de obesidade humana baseia-se em dois argumentos principais: na frequência de mutações MC4R em diferentes populações e nas suas consequências funcionais in vitro. Em primeiro lugar, as mutações MC4R são mais frequentes em populações obesas. As mutações funcionais também foram relatadas em indivíduos não obesos, mas com uma frequência significativamente menor (<1%) (8). Em segundo lugar, a investigação dos mecanismos moleculares pelos quais a perda de função de mutações MC4R causa obesidade sugeriu várias anomalias funcionais possíveis: expressão membranar anormal de MC4R, defeito na resposta agonista e disrupção no transporte intracelular desta proteína. Normalmente, após a união do ligando, a activação do recetor MC4R estimula a proteína G, conduzindo a um aumento subsequente nos níveis de AMPc; contudo, a produção de AMPc intracelular em resposta a péptidos α-MSH demonstrou uma ampla heterogeneidade na ativação dos diferentes mutantes MC4R, variando desde ativação normal ou parcial até uma ausência total na ativação (6,7,9,10). O defeito de transporte intracelular do recetor mutado, por retenção intracitoplasmática, tem sido descrito para a maioria das mutações MC4R encontradas na obesidade infantil (22), mas também em adultos (6,7). Este mecanismo explica a resposta prejudicada aos agonistas. Além disso, o MC4R tem uma atividade constitutiva, o que significa que tem uma atividade basal que não necessita da presença de um ligando, para o qual o péptido relacionado ao agouti (AGRP) actua como um agonista inverso (23).
Na ausência do ligando, o MC4R tem uma acção inibitória na ingestão de alimentos. O estudo sistemático da atividade basal de algumas das mutações mostrou que uma alteração nessa atividade pode ser a única anomalia funcional encontrada, em particular nas mutações localizadas na parte extra-citoplasmática N-terminal do recetor (24). O sinal de saciedade fornecido pela atividade constitutiva do MC4R poderá ser necessário na regulação a longo prazo do balanço energético.
Atualmente aceita-se que as mutações MC4R causam obesidade por um mecanismo de haploinsuficiência e não por atividade dominante negativa. Embora sejam enfatizados os papéis de homo e heterodimerização na síntese e maturação da proteína G, alguns efeitos dominantes negativos das mutações MC4R não podem ser excluídos.
d) Abordagem dos portadores de mutações MC4R
A sequenciação direta do gene MC4R (1 exão) permite a deteção de mutações MC4R. Até à data, é questionável a deteção sistemática de mutações MC4R em indivíduos obesos com história familiar de obesidade.
Embora possa ter interesse o conhecimento da razão biológica (por exemplo: alteração da via da melanocortina) responsável pela maior susceptibilidade à obesidade em alguns indivíduos, não existe terapêutica específica disponível e a gravidade do fenótipo é altamente variável entre famílias portadoras de mutações MC4R. No entanto, o estudo molecular pode tornar-se necessário em poucos anos, no caso de surgirem fármacos específicos tais como agonistas de MC4R para detectar doentes que podem ser elegíveis para tratamento (25).
Até à data, não existe nenhum tratamento específico para indivíduos com mutação MC4R, para além de dieta equilibrada e atividade física. Contudo, é interessante que a atividade física possa ter um papel específico na modulação do fenótipo obeso no caso de anomalias MC4R. Nos ratos MC4R -/-, a atividade física regular é descrita como sendo mais eficiente para limitar o ganho de peso durante a vida quando comparado ao rato selvagem (26). Isto sugere o seu papel específico na abordagem da obesidade relacionada às mutações MC4R e possivelmente à prevenção do ganho de peso em indivíduos com mutação MC4R.
Por isso, devido ao seu importante papel na obesidade, o MC4R está a tornar-se um atrativo candidato a alvo farmacológico, sugerindo que a identificação e o desenho de ligandos ou peptídeos podem resolver o fenótipo causado pelo defeito molecular. Vários ligandos sintéticos foram testados in vitro, desde os clássicos peptídeos NDP-MSH até aos múltiplos tetrapeptídeos e pequenas moléculas agonistas MCR4R, com resultados variáveis (27,28). Contudo, a criação de ligandos enfrenta as preocupações normais da utilização de GPCRs e as dificuldades específicas relativas a possíveis efeitos secundários devido à expressão generalizada de MC4R no cérebro e ao papel já demonstrado do MC4R na função erétil (27,28).
A longo prazo, este tipo de tratamento deve ser avaliado em doentes heterozigotos com diminuição da atividade α-MSH, em protocolos de investigação clínica específica de modo a proporcionar um tratamento efetivo contra a obesidade, provavelmente em combinação com outras abordagens como a dieta e a atividade física. De facto, novos agonistas farmacológicos MC4R foram testados in vitro, restaurando a atividade normal de recetores mutados e ensaios pré-clínicos estão a decorrer (25). Assim, o tratamento com um agonista do MC4R altamente seletivo no modelo de primatas não humanos obesos resultou em diminuição da ingestão alimentar (35%), aumento do gasto energético total (14%) e perda de peso após 8 semanas de tratamento (13,5%). Nenhum efeito colateral, em particular na pressão arterial ou na frequência cardíaca, foi observado nesse estudo (29).
Atualmente, a cirurgia bariátrica é o único tratamento eficaz a longo prazo para a obesidade grave (30), usando diversos métodos cirúrgicos (bypass gástrico laparoscópico, banda gástrica ou gastrectomia em manga ou sleeve). Os dados sobre cirurgia bariátrica em indivíduos com obesidade genética são limitados e controversos. Em 4 pacientes heterozigóticos para mutações MC4R, a perda de peso após bypass gástrico Roux-en-Y foi idêntica à dos controlos sem mutações MC4R, sugerindo que a presença de mutação MC4R não deve influenciar a decisão de realizar a cirurgia (31). Estudos recentes confirmaram estes achados num grupo de adultos obesos (32,33). Em contraste, num adolescente com perda completa de função MC4R, a banda gástrica ajustável laparoscópica resultou na ausência de perda de peso a longo prazo (12 meses pós-operatório), sugerindo que a interrupção total da via da melanocortina pode não ser contrabalançada pela cirurgia bariátrica (34). Outros estudos sobre o efeito da cirurgia bariátrica em indivíduos com mutações MC4R são necessários.
Mutações MC3R
O MC3R, outro recetor ativado por peptídeos derivados do POMC, tem um papel complementar importante na regulação da homeostase energética em conjunto com o MC4R. De facto, os ratos deficientes em MC3R (MC3R -/-) têm aumento da massa gorda, redução da massa magra e maior eficiência alimentar do que os ratos selvagens, apesar de hipofágicos e mantendo taxas metabólicas normais (35). Nos seres humanos, faltam evidências de um papel causal das mutações MC3R. Várias mutações raras com alterações funcionais foram descritas como estando associadas à obesidade grave em crianças (36,37). Em adultos, algumas mutações MC3R, levando a alterações de aminoácidos no recetor, foram também descritas num grupo de 290 indivíduos obesos (38), mas a prevalência total de variantes raras de MC3R não foi significativamente diferente entre as coortes de obesos graves e controlos magros (39). Nenhum fenótipo específico de mutações MC3R foi identificado. Como os estudos de ligação são concordantes na presença de um gene de suscetibilidade para a obesidade humana no locus MC3R (20q13.2-13.3), são necessárias outras pesquisas epidemiológicas e funcionais sobre a importância das mutações MC3R e os seus efeitos combinados potenciais com outros genes no desenvolvimento da obesidade grave e precoce (39,40).
No que diz respeito ao tratamento de indivíduos portadores de mutações MC3R, poucos dados estão disponíveis. Num estudo, Santoro et al, encontraram que Thr6Lys e Val18Ile estavam associados com uma perda de peso diferencial em resposta a um balanço de energia negativo em crianças obesas (41). Em adultos, num ensaio randomizado de dieta hipoenergética com elevado teor vs baixo teor de gordura, a presença de mutações MC3R não teve impacto na evolução do peso (42). Não existem dados disponíveis sobre o efeito da cirurgia bariátrica.
Conclusões
O MC4R é reconhecido como o principal gene candidato para a obesidade humana devido ao seu papel central. A elevada frequência da mutação MC4R associada à obesidade mostra que esta pode ser considerada como a primeira causa de obesidade oligogénica entre as raras obesidades monogênicas (deficiência de leptina,…) e obesidades poligênicas, que são a forma mais comum. A implicação do MC3R na obesidade ainda é debatida e precisa ser confirmada. O desenvolvimento de agonistas MC4R num futuro próximo pode ser o primeiro exemplo de tratamento personalizado da obesidade e pode limitar indicações de cirurgia bariátrica em jovens.
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